O vento vinha cortante do oeste, afiado como uma palavra maldita.
Aquela pequena caravana, que já seguia há sete dias pelo Saara, quebrou, de súbito, antes do pôr do sol. Perdeu uma das rodas, derrubando também o último litro de água, que encharcou a areia por pouco mais do que alguns poucos segundos.
Naquela caravana havia cinco viajantes. Três deles eram estrangeiros, e dois, filhos do Magreb: Kareem, um home calmo, profundo, e Yusuf, que era pura brasa. Ambos se conheciam desde crianças e muito eles tinham estudado o Qur’an, o Alcorão, sob o mesmo Shaykh, isto é, o professor douto nos versos do profeta.
Depois de um dia que consumira o restante das forças do grupo, os estrangeiros dormiam, enrolados em mantas puídas, enquanto os dois muçulmanos, desperdiçando o sono, guardavam o fogo.
O olhar de Yusuf parecia perdido no horizonte, com rugas na testa. Seu keffiyeh, isto é, seu lenço tradicional, balançava com o vento, enquanto seus olhos refletiam o amarelo das chamas como se o inferno se elevasse por dentro de si.
— Ya Kareem — disse, por fim — não percebe o que está acontecendo? Allah nos abandonou por causa deles — apontou para os estrangeiros que dormiam.
— “Deles”? — murmurou Kareem, erguendo o olhar.
— Dos kuffār — Yusuf cuspiu, referindo-se aos “infiéis”, como se a palavra fosse veneno sendo cuspido — O francês, o grego, a mulher espanhola. Eles zombaram da oração hoje cedo, e riram quando me viram lavar as mãos antes da oração. Isso é castigo, irmão. Allah nos fez parar para purificar o grupo de infiéis.
Kareem escutava aquelas palavras em silêncio. Apenas ponderava, enquanto as brasas estalavam.
Yusuf, apertando os lábios, inclinou-se mais perto do fogo e falou em voz baixa, como se recitasse uma sentença antiga. De fato, um trecho do Alcorão:
— “E quando os meses sagrados passarem, matai os idólatras onde quer que os encontreis...” Você se lembra, não é, Kareem? Esse é o verso nove, surata at-Tawbah, aquele do arrependimento. Os sábios dizem que é o āyah as-sayf, o verso da espada. Está claro, não? O próprio Allah ordenou.
Kareem respirou fundo. Parecia decepcionado. Porém, deixou primeiro que o vento passasse, antes de responder dizendo:
— Eu me lembro, meu irmão. Mas lembro mais... que logo depois, o próprio Allah diz: “E se algum dos idólatras te pedir proteção, concede-lha, para que ouça a palavra de Allah, e depois leva-o a um lugar seguro.” Você esqueceu isso, Yusuf. Ele ordena a proteção, não a degola.
— Mas por que proteger quem ofende o nome d’Ele? — grunhiu Yusuf, indignado.
Kareem parecia cansado. Fechou os olhos por um segundo, e prosseguiu:
— Porque Ele é ar-Rahmān, O Misericordioso. E Ele é o mesmo que julga, não nós, meu irmão.
Yusuf riu, um riso de desprezo.
— Julga? O julgamento é agora. Nós temos o dever da jihād, da nossa guerra em nome de Allah — disse ele enraivecido.
— Sim — respondeu Kareem — mas se lembre de que há duas jihād, meu irmão. Aquela que é asghar, a menor, que é externa, e a akbar, a maior, e mais importante, que é contra o próprio nafs, nosso ego. E hoje, irmão, é teu nafs que quer sangue.
Yusuf apertou o punho.
— O profeta também diz: “Combatei aqueles do Povo do Livro que não creem em Allah nem no Último Dia... até que paguem o tributo com humildade.” Não foi você quem me ensinou isso quando éramos meninos, aprendendo sob nosso Shaykhi?
— Ensinei — Kareem suspirou — Mas também lhe ensinei que o Alcorão fala com o tempo, não fora dele. Isso foi revelado a um povo sitiado, não a dois homens perdidos no deserto. Não há califado aqui, meu irmão, nem guerra santa. Há sede, há medo e há três inocentes dormindo, confiando em nós.
O vento soprou mais forte do oeste e cortou o silêncio. Outra das brasas estalou, parecendo o estalo de uma lâmina sendo forjada.
Os olhos de Yusuf reluziram o vermelho daquela brasa. Parecia em febre. E com o mesmo fogo, citou novamente o Alcorão:
— “Quando vos encontrardes com os descrentes, golpeai-lhes os pescoços.” São as palavras de Allah, Kareem. Quem sou eu para duvidar?
— Você é o servo a quem Ele deu raciocínio, meu irmão. Não vê? — disse Kareem, já sem paciência — Não só isso, como esquece o outro verso que diz: “Quem matar uma alma, sem que ela tenha cometido homicídio ou espalhado corrupção na terra, é como se tivesse matado toda a humanidade.” Você quer matar a obra de Allah, Yusuf?
Yusuf engoliu seco. Por um instante sentiu-se ínfimo, pequeno como um grão daquele deserto em frente aquela fogueira. Mas sua raiva não passou, e sua dúvida logo virou ira.
— E o que dirá, se morrermos todos por causa deles? Allah não nos salvará se mantivermos infiéis sob nossa tenda! — cuspiu.
Kareem respirou fundo uma última vez e, inclinando-se para a frente, olhando firme nos olhos de Yusuf, disse:
— Escuta, irmão... Allah já falou sobre os povos antes de nós. Ele mesmo disse no Al-Baqarah, o segundo capítulo do Alcorão: “De fato, os crentes, os judeus, os cristãos e os sabeus, quem dentre eles crer em Allah e no Último Dia, e fizer boas obras, terá a sua recompensa junto de seu Senhor; e não haverá temor sobre eles, nem se entristecerão.” Ele mesmo os chama de crentes também, Yusuf. Os que amam o Bem não são teus inimigos, são teus vizinhos.
Yusuf ficou em silêncio.
O vento trouxe, lentamente, o cheiro distante de poeira.
— E — resmungou Yusuf — se o deserto for o lugar onde Allah separa os puros dos impuros? — ele perguntou, como se perguntasse a si mesmo.
— Então que Ele veja nossos corações, não nossas mãos — disse Kareem. — O coração puro é aquele que poupa quando poderia ferir, meu irmão...
O fogo, que antes inflamava poderosamente rompendo a noite, dançou uma última vez antes de minguar. E, lá fora, o Saara respirava um mar de silêncio e lembrança.
Yusuf baixou sua cabeça e seus olhos, vencidos, marejaram.
— Kareem... e se o pecado já estiver em mim, meu irmão? — tremeu a voz.
— Então — Kareem sorriu — volta o rosto a Allah e pede perdão. Você sabe que Ele ensina: “Ó Senhor nosso, não nos condenes se esquecemos ou erramos”.
Kareem pôs a mão no ombro de Yusuf e prosseguiu:
— O castigo que você vê é só o reflexo do seu medo, irmão. Allah é justo, mas mais do que isso, também é paciente. E se Ele quis que esses infiéis cruzassem nosso caminho, talvez seja para testar a sua misericórdia, não a sua lâmina.
Yusuf não pôde conter as lágrimas e, seu choro, mesmo baixinho, foi profundo e sincero. E enquanto sua alma era lavada, no horizonte, os primeiros raios do amanhecer tingiam o céu. E, conforme o Sol se levantava, os três estrangeiros despertaram lentamente, sem saber da guerra que quase lhes roubara a vida durante a noite.
Kareem se levantou e, cobrindo Yusuf com seu manto, disse com a voz suave:
— Vamos, irmão. Você sabe mais do que ninguém que Allah é as-Sabur, O Paciente. O dia nasce, e Ele ainda nos dá tempo.
Assim ouviram ao longe o som de uma caravana que se aproximava pela areia, alegrando o coração de todos com a providência.
Kareem e Yusuf se olharam contentes e, conforme todos disparavam em direção àquela salvação no deserto, Yusuf olhou para trás uma última vez, para o lugar onde estivera o fogo; e lá, no centro da cinza, viu algo que parecia o resto de uma brasa viva.
Parecia o olho de algo que vigiava. Talvez fosse o olhar de Allah, cuidando deles. Talvez fosse apenas o dele, enfim, compreendendo o Alcorão de uma vez por todas.
