Aquele era o momento que eu
esperava por muitos anos.
Nossa Rainha Leonesa tinha se
unido ao Todo havia três dias e,
naquele instante, as minhas irmãs Leoas preparavam a Coroação da nova Rainha:
eu.
Por muito tempo estudei sob a
proteção e a sabedoria de nossa Rainha Leonesa e aprendi dela os níveis mais
altos do Rugido de Sekhem. Dentre as
Leoas, não havia nenhuma mais hábil e poderosa do que eu; pois conhecia os
detalhes de tudo o que se relacionava aos belíssimos Antigos Mistérios da Ordem de
Sekhem. Eu conhecia a teoria por trás do poder do Olho de Rá como se eu mesma o possuísse.
– Beatrice – chamou-me uma de
minhas irmãs Leoas – Chegou nosso momento... Vamos?
Inspirei fundo, estufei meu
peito e segui com ela.
No salão principal, onde seria
feita a coroação, somente poderiam deliberar as três Leoas mais velhas que,
claro, já haviam feito o juramento de coroar a próxima Rainha Leonesa, assim
abdicando elas mesmas da Coroa.
Por mais que, oficialmente,
ninguém soubesse quem seria a próxima Rainha, já que era uma decisão feita
pelas três mais velhas, todas nós sabíamos que eu era a preferida a ser coroada
e que, certamente, seria assim. Eu tinha o apoio de todas as minhas irmãs
Leoas, inclusive da Rainha Leonesa anterior. E, mais que isso, dentre todas as
irmãs ali presentes, somente eu e mais duas Leoas havíamos construído
completamente nossos Corpos Solares,
requisito fundamental para ser Rainha.
Assim que chegamos ao salão
principal, todas nós entoamos nosso rugido de ordem, cruzando os braços sobre o
peito e, em seguida, descendo as mãos em forma de garra ao lado do corpo.
– Hu-Ha-Hoar! – nós rugimos.
As três irmãs mais velhas
iniciaram a ritualística para a invocação do poder da antiga Rainha, cujo corpo
descansava sobre o altar principal à nossa frente e, posteriormente, seria
levado à Abidos para seu enterro junto com os corpos de nossas Rainhas anteriores.
O idioma usado nas invocações,
a forma mais arcaica do egípcio, remontavam a antiguidade de nossa ordem,
fundada por Neithhotep, mas inspirada nos Mistérios transmitidos por Órix: O
primeiro ser humano a dominar o Sekhem, a Essência Primordial Caótica.
Todas nós nos sentamos em
posição de Contemplação, em um semicírculo ao redor do altar, e removemos
nossas Garras de Sekhmet. Então passamos a infundir nosso Sekhem em todo o
ambiente, criando um espaço de perfeição, para que o poder da Rainha pudesse
ser transmitido de forma sublime.
Conforme o ritual se estendia,
os nomes de todas as nossas Rainhas passadas foram invocados para que
abençoassem a nova Rainha e, em determinado momento, o nome da escolhida foi
pronunciado.
– E... – começou a irmã mais
velha – sob os auspícios da Deusa Sekhmet, a Vingadora de Rá, a própria
Essência Leonina que provém do Caos Primitivo antes da criação, em frente às
memórias de nossas gloriosas Rainhas passadas, o Olho de Rá escolheu sua
companheira.
Meu coração disparou. Estava
nervosa. Seria uma responsabilidade incalculável, mas eu estava à altura, pois havia
sido iniciada nos Antigos Mistérios da
Ordem de Sekhem aos sete anos e fazia quinze que eu me dedicava com todas
as minhas forças àquela Ordem.
– Esta que vai nos guiar de
hoje em diante... – continuou a irmã mais velha, tomando em mãos uma pequena
tigela – primeiro precisará passar pelo Duat
e enfrentar os mais terríveis mistérios e perigos do mundo sombrio. E,
retornando dele, com seu Corpo Solar resplandecente, será então unificada em
glória com o poder da Rainha: O Olho de Rá.
Para que pudéssemos desenvolver
nossos Corpos Solares, era essencial
passar pelo ritual corriqueiro de Morte e Ressurreição. Nós éramos colocadas em
um estado de quase morte e, vagando pelo Duat,
passávamos por certos obstáculos mais simples e, retornando ao nosso corpo,
construíamos mais um pouco do nosso Corpo
Solar. Porém, era claro que aquela última viagem ao Duat, o submundo mais denso da existência, em nada se comparava com
nosso ritual de Morte e Ressurreição. Era um desafio extremo. Mas, mais uma
vez, eu estava a altura daquele feito. Sabia o que fazer.
– Levante-se e venha fazer sua
viagem... – disse a irmã mais velha, chamando a próxima Rainha, fazendo meu
coração disparar violentamente – ...Layla.
Meu coração parou em um gelo
terrível. Aquilo não podia ser.
– Não! – gritei de forma
impulsiva.
Todas me olharam assustadas.
Eu devia ser a Rainha, não
Layla. Layla havia, claro, desenvolvido seu Corpo
Solar, mas não era poderosa como eu; não tinha o mesmo conhecimento que eu.
Ela não estava à altura de ser a próxima Rainha Leonesa. Eu estava.
– Você não concorda com a
nossa decisão, Beatrice – a irmã mais velha me inquiriu.
Olhei para Layla. Aquela árabe
ingênua não tinha o que era necessário para liderar aquelas Leoas. Eu, naquele
instante, queria arrancar aqueles olhos negros com minhas próprias Garras de Sekhmet.
– Eu devia ser a Rainha –
levantei-me falando alto – Layla não é poderosa suficiente; ela não é capaz de
liderar nossas irmãs. Eu sou! – berrei batendo no peito.
– O que você acha, Layla? – a
irmã mais velha perguntou a ela.
Layla se levantou e me olhou
nos olhos. Parecia estar com pena de mim, aquela maldita.
– Se for do desejo da Ordem...
– ela disse – Eu não me importo de abdicar da Coroa em prol de outra irmã
Leoa...
Finalmente alguma lucidez
naquelas cabeças. Tudo estava voltando aos eixos.
As três irmãs mais velhas
voltaram-se umas paras as outras e começaram a discutir baixinho. Naquele
momento elas eram o poder máximo da Ordem, até que a nova Rainha fosse coroada.
– Beatrice... – a irmã mais
velha virou-se para nós – Nós três, sob os poderes absolutos que nos são
conferidos nesses três dias de transição, decidimos, por unanimidade, que a
nova Rainha Leonesa continua sendo Layla e que você está expulsa da Ordem de
Sekhem.
Fiquei em choque.
Um silêncio tomou conta
daquele lugar e eu não sabia o que fazer. Apenas o medo subia pela espinha como
um escorpião escalando uma rocha na noite fria do deserto.
– Por quê? – balbuciei
assustada.
– Porque uma Rainha, mais do
que ter poder, precisa ter um bom coração, calma e pureza de sentimentos –
disse a irmã mais velha – E você não tem isso. Você é vil, egocêntrica,
presunçosa e, isso tudo a torna extremamente perigosa para a nossa Ordem... –
ela levantou a mão – Leoas!
Todas as Leoas colocaram suas Garras de Sekhmet de volta e se
levantaram, viradas para mim.
Ser expulsa da Ordem de Sekhem era uma forma bonita de
dizer que eu seria executada; pois nosso conhecimento não devia jamais deixar a
Ordem. Era vital mantê-lo longe do mundo.
Mesmo eu sendo a mais poderosa
dentre todas elas, não seria capaz de enfrentá-las e sair com vida. E, mais do
que isso, não queria ferir minhas irmãs. Queria provar a elas que eu era a
melhor escolha para liderá-las. E, sendo assim, só me restava fugir, antes que fosse
tarde demais.
– Eu amo vocês... – eu disse,
explodindo todo o meu Sekhem acumulado, destruindo meu Corpo Solar.
Com aquele poder todo sendo
transferido para o plano físico, eu me movi para fora de nosso templo escondido
sob as areias do Planalto de Giza,
antes que qualquer uma de minhas queridas irmãs Leoas pudesse sequer ver para
onde eu estava indo.
Assim, fugindo como uma
traidora, cuja única vontade era liderar nossa Ordem para a glória, eu segui
pela escuridão do mundo, evitando ser descoberta, reconstruindo, ano após ano,
meu Corpo Solar, e tentando
desenvolver por mim mesma o poder do Olho
de Rá, acessando os poderes mais complexos do Caos Primordial e, foi então
que eu o olhei nos olhos, e ele me olhou de volta.
A Saga Draconiana – Fragmentos
Draconianos
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A. G. Olyver