Havia algo errado, eu podia sentir.
Mesmo andando e sentindo
aquelas pedras sob a sola dos meus pés, respirando o ar fresco daquela tarde
ensolarada, eu sabia que havia algo errado. Talvez não “errado” no sentido de
não dever estar acontecendo, mas de que não era normal. Algo estava diferente
no ambiente, no Fluxo Primordial que trespassava meu corpo e meu Ponto Central.
Acordara aquele dia com uma
sensação de deslocamento.
Minha última lembrança era de
que eu havia ido dormir cedo na última noite, logo depois de ler meu velho
Manual do Protetorado, que herdara de minha mãe. Tinha tentado, mais uma vez, transmigrar
minha Essência para que pudesse equivaler a Essência Draconiana, para poder
dominá-la. Estava há muito tempo no terceiro nível da Palma Servil e, se não
conseguisse atingir aquele estado absoluto, não poderia realmente ser uma
Protetora por completo.
Dominar o terceiro nível da
Palma Servil e me tornar uma Protetora Plena me faria Mestra e, assim, poderia
dar continuidade ao Protetorado, abandonado por minha mãe, junto comigo. Nós
precisávamos existir. Desaparecermos não era uma opção. O ser humano, sem nosso
conhecimento e domínio da Essência Draconiana estaria perdido nas mãos dos Drakkars.
Sem ninguém para mantê-los na coleira, seus instintos selvagens e raivosos
poderiam levar a humanidade a uma nova era de opressão ou mesmo extinção.
– Tudo bem... – resmunguei –
Foi isso que fiz. Então por que tudo parece tão fora do lugar? – perguntei a
mim mesma novamente.
Parei de súbito e me sentei.
Iria praticar minha meditação ali mesmo. Através da Contemplação eu poderia
buscar as respostas mais rapidamente. Direcionada pelo Reflexo eu obteria
aquele conhecimento.
Em posição de Contemplação,
sentada sob minhas pernas, toquei o céu da boca com a ponta da minha língua
para fechar o circuito. Então passei a inspirar fazendo o Fluxo Primordial
fluir desde o meu Ponto Central, subindo pela minha espinha em direção ao topo
da minha cabeça. Então, ao expirar, fiz o Fluxo descer pela frente do meu corpo
de volta até o Ponto Central, completando o círculo. Prossegui assim até que
meu corpo começou a entrar em harmonia com o Todo.
Toda aquela técnica havia sido
ensinada a mim por minha mãe, antes que desaparecesse no meio da noite, abandonando
a mim e ao Protetorado. Felizmente, antes de nos deixar, ela me ensinara tudo o
que sabia sobre o Clã dos Protetores e a Palma Servil. O resto, bem, seu Manual
do Protetorado me ensinaria.
Durante a Contemplação comecei
a sentir uma pressão sobre meu peito e, assim, caindo em um estado de profunda
meditação comecei a ter visões.
“–
Esse parece muito antigo...” – ouvi no ar como um som
fantasmagórico.
“–
Quatrocentos e dezoito anos...” – ouvi minha própria voz
naquele eco do além.
– Meu Manual – disse pondo-me
de pé enquanto percebia que aquelas falas se referiam a ele.
Precisava retornar à minha
loja e verificar meu Manual. Fosse o que fosse, a resposta que procurava estava
relacionada a ele, como mostrava a visão.
Assim, corri de volta para meu
velho antiquário, que me fazia também as vezes de casa, e fui verificar minha
prateleira onde guardava meu velho Manual do Protetorado, herança de família
que já contava com quase meio século de vida.
– Aqui está... – eu o peguei
na mão.
Sua lombada, quase ilegível,
trazia, além de outras coisas, o nome da minha família desde os mais antigos
tempos: Clã Wu.
Levantei minha cabeça e vi meu
rosto refletido no vidro da janela. Tudo parecia normal, ainda que meu cabelo
parecesse maior do que me lembrava.
– Preciso cortá-lo de novo... –
ri sozinha.
Olhei para a capa do Manual e
vaguei pelos meus pensamentos por uns instantes. Sabia que, para transmigrar
minha Essência precisava trazer minha mente para o mais absoluto controle
intelectual, e, de fato, vinha tentando fazer aquilo diariamente, porém, havia uma
única coisa eu ainda não tinha testado; e uma coisa que via minha mãe
praticando diariamente.
– É isso... – tive o insight – Preciso...
Fui interrompida pelas batidas apressadas na porta, como se estivessem desesperados.
– Já vou! – gritei, seguindo
para a entrada da loja.
Se fosse um cliente, àquela
hora, naquele desespero, eu deveria cobrar muito caro por qualquer item que
comprasse. Afinal, tudo aquilo que tinha ali eram relíquias de família
acumuladas por séculos. Tinha, realmente, um valor incalculável.
– Não estamos abertos ainda...
– disse entreabrindo a porta, para ver quem era.
Ao abrir a porta, vi meu velho
amigo que tinha, como de costume, desaparecido por alguns dias para vigiar sua
protegida em Nova Iorque. Ele trazia em seus olhos azuis um terror que eu não
compreendia. Algo nele refletia em mim um medo estranho.
– O que foi, Adrian? – eu
perguntei assustada.
– Bo... – ele entrou pela
porta – Tem algo errado... – disse.
Ele também havia percebido.
A Saga Draconiana - Fragmentos Draconianos
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A. G. Olyver